sábado, 10 de março de 2012

O BOTAFOGO E EU... (por ARMANDO NOGUEIRA)



"Amar um clube é muito mais que amar uma mulher. Ao longo da vida, troquei de namorada, sei lá, mil vezes. E outras mil fui trocado por elas, mas a recíproca não está em jogo, agora. Jamais trocaria o Botafogo, nem por outro clube, nem por nada, neste mundo.

Guardo até hoje, integro, o sentimento do primeiro encontro. Foi no minúsculo estádio de General Severiano, na tarde do dia 10 de setembro de 1944. Tinha eu acabado de chegar de Xapuri, minha terra, e estava embasbacado com a beleza da cidade do Rio de Janeiro.

O jogo era Botafogo e Flamengo.

Meu primo Carlos gosta de assistir em pé, bem no meio da arquibancada; e é aqui que já estamos os dois. O primeiro degrau de cimento fica tão perto do campo que dá até pra ouvir o respirar ofegante dos jogadores. Como eles se xingam! Nunca pensei que fosse assim.

A partida começa. A multidão, dividida ao meio, alterna silêncios e gritos de guerra que me assustam um pouco. Até agora, já se foram 15 minutos de jogo e nada de gol. Meu coração, porém, já dá os primeiros sinais de uma simpatia que não tardará em palpitar dentro do meu peito. Sei que esse time do Flamengo está cheio de craques. Meu primo vai me cantando, um por um: "aquele é o Zizinho - um monstro... aquele outro é o Jaime - joga como um príncipe... esse aéi é o Pirilo".

Do outro lado, só há um craque de fama nacional: é Heleno de Freitas. O resto é de currículo modesto. Mas, todos trazem no peito uma estrela de cinco pontas, radiosa como a luz da tarde ensolarada.

Pois se bem me lembro, foi de vê-la reluzir no peito de Heleno que se deu a revelação. Hoje, mais de meio século depois, eu me pergunto, por mera curiosidade, por que será que não escolhi torcer pelo Flamengo? Afinal, o Flamengo já era o time mais querido do Rio. Dava - pra usar uma expressão mais moderna - dava ibope torcer pelo Flamengo. Tinha acabado de sair bicampeão carioca. Era certeza de alegrias pela frente. E, no entanto, eu preferi trocar o certo pelo duvidoso. Em nome de que idéia? Por que o Botafogo da estrela solitária simbolizada em Heleno e não o Flamengo de Zizinho, de Biguá, de Pirilo - uma soleníssima constelação de craques?

Afinidades eletivas, meus amigos. Coisas do coração. Mistérios da alma. Premonição, talvez, pois, no final do jogo, o Botafogo daria a volta olímpica saudando a sua torcida. Tinha goleado o Flamengo, ganhando de cinco a dois. Heleno marcar dois belos gols, um deles de cabeça. Uma testada bíblica!

Nascia, ali, uma simpatia de mão única, pois o Botafogo nem sabia da minha reles existência. Não sabia, nem precisava saber. O futebol é assim: desperta na pessoa um sentimento virtuoso que transcende a amizade, que vai além do amor e culmina no santo desvario da paixão. Tem de tudo um pouco, porém, é mais que tudo. Torcer por uma camisa é plena entrega. É mais que ser mãe, porque não desdobra fibra por fibra o coração. Destroça-o de uma vez no desespero de uma derrota. Em compensação, remoça-o no delírio de uma vitória.

O Botafogo tem tudo a ver comigo: por fora, é claro-escuro, por dentro é resplendor; o Botafogo é supersticioso, eu também sou. Quantas vezes, vi o roupeiro Aloísio sair dando nós nas cortinas da sede imperial pra amarrar as pernas dos times visitantes, em General Severiano. E eu acreditava piamento nos trunfos do feiticeiro Aloísio. Dava-lhe força pra que os sortilégios do futebol não traíssem o Botafogo.

Houve uma partida em que o Botafogo perdia de um a zero. Carlito Rocha, o grande bruxo da história do clube, me perguntou quanto tempo ainda restava de jogo. Meu relógio estava parado. Começou a esbravejar comigo. Gritava que a desgraça do time estava ali, no meu relógio. Relógio parado dá azar. Arrancou do meu braço a pulseira e jogu fora, com relógio e tudo. Era um reles "patek-cebola". No dia seguinte, Carlito me daria outro, de presente. Igualmente reles, mas, pelo menos, funcionando.

O Botafogo é bem mais que um clube - é uma predestinação celestial. Seu símbolo é uma entidade divina. Feliz da criatura que tem por guia e emblema uma estrela. Por isso é que o Botafogo está sempre no caminho certo. O caminho da luz. Feliz do clube que tem por escudo uma invenção de Deus.

Estrela solitária.

O Botafogo sempre oscilou entre Heleno de Freitas e Garrincha: pássaro de fogo, pássaro de luz; um era glória e tormento, o outro, humor e encantamento. Heleno era impiedoso como a ironia, que fere; Garrincha era límpido e generoso, como o riso, que conforta. Entre os dois jogadores, cujos tempos míticos se somam, e se eternizam, nasceria também para a perpetuidade alvinegra, um craque magistral.

Um dia, consumido de saudades botafoguenses, escrevi um breve poema sobre Nilton Santos. Quanta majestade no trato de uma bola! O moço jamais fez um truque com a bola. Só fazia arte. Nilton não era um jogador de futebol, era uma exclamação. Tu em campo parecias tantos/ E, no entanto - que encanto - eras um só: Nilton Santos.

O torcedor do Botafogo tem um coração repleto de memoráveis cintilações: convivem, na mesma estrela, dribles insondáveis de Garrincha, passes impressentidos de Didi, antevisões de Nilton Santos, cismas de Carlito Rocha e gols, muitos gols, de Heleno de Freitas, cada um mais épico que o outro.

O Botafogo sou eu mesmo, sim senhor! "

[/u][/i](Armando Nogueira, A Ginga e o Jogo, págs 117 -120)

segunda-feira, 5 de março de 2012

Mais um momento efêmero de perfeição para Nadia Comăneci

Ela tinha 14 anos e eu, 12. O ano era 1976. Ela estava em Montreal, Canadá, disputando sua primeira olimpíada. Coração de criança, o meu, colado na TV, empolgado com o clima olímpico. Eu também estava lá de alguma maneira, acompanhando todos os esportes, inclusive este, a ginástica artística, com o qual não tinha qualquer intimidade.

Ela, com uma graça que sequer parecia permitida no esporte, foi a primeira atleta da ginástica a receber nota dez, que representa o reconhecimento de desempenho perfeito. Foi uma coisa muito marcante, notícia no mundo todo. Penso que foi exatamente a mistura de excelência na execução dos movimentos e da coisa de criança, que ela não perdeu durante as apresentações, a inocência, que possibilitaram esta imensa repercussão.

Comăneci, assim, com este acento estranho no nome, de origem romena, tem um currículo invejável: 9 medalhas olímpicas, 4 vezes campeã mundial, 12 vezes campeã europeia, entre outras tantas coisas. Viveu tudo isso em pleno regime comunista, na Romênia, ainda nos tempos da “Cortina de Ferro”, e acabou fugindo e se radicando nos Estados Unidos, onde nunca deixou de militar no mundo da ginástica,

Para minha surpresa e saudade, revejo a moça, agora com 50 anos – vai fazer 51 em novembro – numa entrevista nos canais esportivos de TV a cabo e, para começar a entrevista, o repórter tasca a pergunta que parece mais o canto da sereia: “Como você vê a história de ter sido a atleta perfeita?”. Essa é a hora em que os reis são depostos e que o herói pode escorregar para sempre. Mas Nadia Comăneci mostra que a mestria não a abandonou.

Ela responde dizendo que o conceito de perfeição é muito complexo e, no esporte, o que mais se aproxima disso é o fato de se alcançar, em algum momento, uma marca superior ainda não registrada, mas que daí a alguns segundos ela talvez já seja superada. No esporte, segundo ela, mais cedo ou mais tarde, uma marca será superada. Touché.

O restante da entrevista mostra uma mulher lúcida, entregue até hoje ao seu compromisso com a ginástica, dizendo que aquele momento, há 36 anos, foi o mais marcante da sua vida de atleta, mas que em todas as olimpíadas às quais ela vai – foi a todas desde aquela – vive emoções fortes, e está ansiosa para chegar a Londres este ano, e ao Brasil, em 2016. Perfeita, mais uma vez, por um instante que seja.